quinta-feira, 22 de abril de 2010

Romão Gramacho Falcão, sertanista

No grupo dos primeiros Gramachos da Bahia foi este o que deixou impressões mais fortes na história local, seja na toponímia seja no folclore.

É provável que tenha nascido por volta de 1710.

Foi certamente um aventureiro, caçador incansável de minérios nos sertões das Minas Gerais e da Bahia, tendo deixado inúmeros registros de sua passagem por aqueles rincões na rica tradição oral do povo baiano. O nome de Romão Gramacho aparece associado como precursor da fundação de várias cidades do interior de Minas Gerais e da Bahia, todas em áreas onde a mineração esteve na origem dos primeiros povoamentos. São os casos, além das citadas, de Itambé do Mato-Dentro, Morro do Chapéu, Jacobina, dentre outras. Romão Gramacho é, atualmente, nome de rua em várias cidades do interior baiano. Entretanto, o lugar mais importante a que seu nome está associado é o da Rio dos Brejões, ou Vereda “Romão Gramacho”, onde se situa um belíssimo parque natural com uma caverna que ostenta um pórtico de mais de 100 metros de altura, imensos salões formados na rocha natural em cujas paredes se pode encontrar inscrições rupestres de antigos habitantes da região. Trata-se de uma APA – Área de Proteção Ambiental sob controle do IBAMA, e fica próxima a cidade de Irecê.

Freqüentemente citado como fundador ou precursor da fundação de várias cidades nesses estados, em nenhuma dessas referências se menciona qualquer fonte documental. Essa condição, associado ao fato de ter entrado para o folclore baiano numa curiosa história envolvendo a construção de uma igreja, o colocavam, até aqui como um personagem lendário.

Afonso Costa atribuíu ao santamarense Sérgio Cardoso, num texto jornalístico de 1929, a divulgação de uma biografia do sertanista, na qual se afirma que Romão era filho de uma conceituada família do recôncavo da baía de Todos os Santos, de onde teria fugido ainda jovem levando consigo um escravo [1] . Teria regressado para a sua terra natal muitos anos depois, rico, para dedicar-se a construção de uma ou duas igrejas em Oliveira dos Campinhos, um distrito de Santo Amaro. Ali teria falecido no ano de 1772.

Os documentos do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, ainda que episódicos, nos permitem reconstituir melhor sua biografia e dar consistência ao personagem e fazer justiça à sua fama.

O primeiro registro que se refere à Romão data de 1738. Naquela altura, já Sargento-Mor, lhe foi emitida certidão de que apresentara ao Vice-Rei do Brasil, Conde de Galveas, os seus papéis de serviços até aquela data. Não seriam poucos, pois o documento menciona que estavam relacionados em nada menos que trinta e duas páginas.

Em 1743 apresenta requerimento dirigido ao Rei D. João V solicitando confirmação da patente no posto de Capitão do Sertão dos distritos de Itacambira, Rio Verde, Rio Pardo, Gorutuba e os que ficam entre estes e o Jequitinhonha.

Em 1767 está às voltas com negócios de salitre discutindo o preço com o comprador, Francisco Xavier de Mendonça, com a intervenção do Governador Geral da Província da Bahia, Conde de Azambuja que já não ostentava mais o título de Vice Rei pois a sede do reino havia sido transferida para o Rio de Janeiro em 1763. O comprador seria, provavelmente, Francisco Xavier de Mendonça Furtado que já havia ocupado o posto de Governador da Província do Grão-Pará e era irmão do Marques de Pombal, o todo poderoso ministro de D. José. Na época estava em Portugal, ocupando o Ministério da Secretaria de Estado. Vale a pena transcrever esse documento que revela a opinião do Conde sobre seu interlocutor ao resumir para o interessado o resultado das negociações.



“Ilustríssimo Capitão General

Falei com efeito a Romão Gramacho na forma do aviso de V.Excia. de julho do ano passado, sobre o salitre, assistindo também à conferência o Desembargador Intendente do Ouro. Lendo o dito Romão o que V. Excia. diz, respondeu que não teria dúvida em vender o quintal de salitre, nesta cidade, a dezoito mil réis, correndo as quebras por sua conta. Mas como isso passou de palavra, lhe disse, reduziu o mesmo que propunha a papel, o que ainda não fez por haver poucos dias depois da conferência. Mas também o mesmo Gramacho me requereu que nestes primeiros dois anos não podia fazer coisa nenhuma em razão de uma obra que traz entre as mãos que é uma capela que prometeu a Nossa Senhora, juntamente que necessitava de tratar isto também com os sócios que haviam de ser da mesma diligência.

O Intendente se lembrou de que nas Minas Gerais, principalmente para a banda do Serro do Frio, se tira salitre e se persuade que os homens de lá o poderão dar em melhor conta, pela facilidade da condução, porque como na estrada das Minas andam conduzindo cargas de fazenda tantos mil cavalos, esses, na torna viagem, poderão carregar o salitre com menos custo e também acham as estradas já abertas, o que por cá não há.

À vista disso lhe dei uma cópia da carta de V. Excia e das quebras que teve o salitre que daqui foi, para ele escrever para as Minas e poder nos homens de lá botar a conta à conveniência que lhe faz.

Assim, me parece será conveniente esperar pela resposta, pois além do que fica dito, como Romão Gramacho mete tanto tempo em meio e é já muito velho, poderá faltar-lhe a vida no meio da diligência e, por outra parte, ainda que respondeu o que acabo de referi, sempre me parece que lhe não ficou muito fixo nisto, e que o tempo que pede será talvez com o fim de intentar por outra parte algum requerimento, porque estes homens de Minas são todos muito espertos e sabichões, e o tal Romão Gramacho tem opinião de não ceder nessa parte a ninguém.

Bahia, 29 de março de 1767

Conde de Azambuja”



Não há duvida que esse documento traz algumas informações importantes para comprovar as informações do jornalista santamarense Sérgio Cardoso, acima citado. É ninguém menos que o Conde de Azambuja a relatar a avançada idade do sertanista, apesar de ainda hábil e esperto negociador, e seu compromisso de construir uma igreja. Como o encontro foi em Salvador é bastante provável que o idoso Romão vivesse nas proximidades, muito possivelmente, na sua Oliveira dos Campinhos cerca de 50 km de distância da capital.

A igreja de Oliveira dos Campinhos, cuja estrutura original o tempo arruinou, datava de 1718. Sua reconstrução consta ter sido iniciada no ano de 1768 e suas torres ligeiramente convergentes deram suporte à lenda de que foram produto de um violento coice do diabo quando se viu enganado pelo esperto Romão. Desde 1942 a igreja está tombada pelo IPHAN.

Interior da igreja de N. S. da Oliveira, em Campinhos, BA
(Foto do autor, 2004)
Lápide sobre o túmulo de Romão Gramacho Falcão
Igreja de N. S. da Oliveira, Campinhos, BA
(foto do autor, 2004)


Nota:
[1] Cf. Costa, Afonso “De como nasceu, se organizou e vive minha cidade (Jacobina)”, in Anais do IV Congresso de História Nacional, Vol. 9, pp. 181-384, IHGB, Rio de Janeiro, 1949

sábado, 17 de abril de 2010

O padre Roberto de Brito Gramacho: pároco de Canavieiras (Poxim) e Paripe

Roberto de Brito Gramacho era filho do engenheiro militar Antonio de Brito Gramacho, personagem da postagem anterior. É o que se conclui do texto publicado nos Anais do Arquivo Público da Bahia (v.56-57) que faz referência a uma "carta do rei de Portugal ao governador e capitão-general da capitania da Bahia informando sobre a petição do padre Roberto de Brito Gramacho, vigário da matriz de N. Sra. do Ó de Paripe, do arcebispo [sic] da Bahia, pedindo mercê do soldo de seu pai Antonio de Brito Gramacho, capitão de infantaria engenheiro.”

Roberto nasceu, provavelmente, na cidade de Salvador, Bahia, por volta de 1715-1720. Em 1741 foi nomeado vigário da freguesia de N. Sra. da Boaventura de Poxim, no atual município de Canavieiras, litoral sul da Bahia. Em 1770 estava em Salvador, como pároco da Igreja de Nossa Senhora do Ó de Paripe.

O Padre Gramacho é o autor do que talvez seja a primeira descrição da região da atual Canavieiras onde já estava há quinze anos. Isso nos idos de 1756. 

Naquela época Portugal estava sob o governo do Marques de Pombal, sob o reinado de D. José I (1750-1777). Uma das muitas iniciativas desse governo foi o de procurar juntar todas as informações disponíveis sobre o Brasil. A igreja católica tinha então seus pastores em quase todas as povoações, para que as almas dos primeiros habitantes não se perdessem pelos ermos distantes do pais. Além disso os padres eram pessoas com boa educação formal. Portanto, nada mais natural do que  serem encarregados de colaborar naquele grande esforço de “mapeamento” do nosso território. Afinal, os padres tinham seus salários pagos pelo governo. O resultado é que grande parte das primeiras descrições e mapas existentes sobre as partes mais distantes do território brasileiro são daquela época e fruto dessa decisão. E foi assim que o Padre Gramacho, então vigário em Poxim (atual Canavieiras), tornou-se o primeiro historiador local. Foi o autor do primeiro "retrato" daquele que é hoje um dos mais aprazíveis recantos turísticos da Bahia.

A igrejinha de S. Boaventura, em Canavieiras (BA), construída em 1718
(em foto de 2005 obtida do Flickr de Felipe Corneau)

Gramacho não se fez de rogado e por logo mãos à obra. Afinal não era todo dia que lhe aparecia uma oportunidade de ser lido pelos que em Lisboa cuidavam dos interesses do Brasil. Assim, já no começo de 1756 fazia despachar para Salvador as suas descrições do lugar, registrando logo na introdução, os seus lamentos e pedidos de ajuda. Dizia ele em bela letra e inspirada prosa:

“Manda-me V.Exa. descrever as povoações desta Paróquia com a individuação, que expressa a ordem de S. Majestade, que proximamente recebi. Sem demora vai correndo a pena, que de assim em doze léguas de tanto despovoado, primeiro havia de cansar como a pomba da Arca [1], do que chegasse a descobrir povoação. Bem mostra ser esta Paróquia a extrema, e princípio do Arcebispado, pois de tal sorte tem em si unidos o fim com o principio, que sem jamais passar do seu princípio se vê quase reduzida ao fim. Todas as suas coetâneas que não são menos de 19 se vem aumentadas nas Igrejas edificadas à custa da Real Fazenda, no culto, e ofícios Divinos, e pelo conseguinte no povo, no comércio, e opulência; só ela em tudo é a mais tênue, e diminuta; e trazendo os mesmos requerimentos há mais de dez anos na Corte jamais chegaram ao despacho, e agora totalmente pereceram na ruína universal de Lisboa [2], e com eles as esperanças”.

A primeira folha do relato do padre Gramacho


Tendo descrito longamente os rios que permitem, além do mar, fazer contato com as Minas Gerias e as vizinhas freguesias, resume os principais espaços ocupados pelos habitantes da época”

“Ajuntando-se o Rio de Patipe com o mar por esta barreta faz uma ilha que se estende por espaço de quatro léguas até à barra geral do mesmo rio, e não tem mais largueza, que a de 200 ou 300 passos ou braças em parte conforme as enseadas. Na primeira légua imediata à dita barreta está situada a povoação dividida porém , ou distribuída em três lugarejos. O primeiro se chama Embucagrande, que vale o mesmo que enseada grande, e nele existem 62 pessoas de comunhão e tem Capela de invocação de S. João Baptista feita de adobe de barro, e rebocada de cal, sem mais paramentos que para haver de celebrar nela o pároco traz os ornamentos da Matriz. Segue-se dai a um quarto de légua a Embuquinha, que quer dizer enseada pequena, e aí se acham 43 pessoas de comunhão, e mais 35 no restante da légua até o último lugar chamado Patipe, que por todos fazem o número de 140 pessoas de comunhão”.

E depois de ter levado sua descrição até às margens do Una, limite norte da freguesia do Poxim, encerra mencionando o mapa que vai anexo “cujo impolido lhe não muda a natureza de ser o modo mais expressivo, e praticado para por diante dos olhos os lugares mais remotos.”

Canavieiras (Poxim) em 1756



A última folha do relato de 1756



Notas:

[1] Refere-se á passagem do Livro do Gênesis, capítulo VIII, 10 e 11 “Duas vezes saiu a pomba da arca de Noé: do primeiro vôo, não estava ainda bastantemente desafogada a terra, e não achando onde firmar os pés, voltou sem novas da paz. Do segundo vôo estava já sossegada a tormenta e desaguado o dilúvio: descobre a oliveira, toma o ramo no bico e alegrou com a vista dele as relíquias do passado mundo e os princípios do futuro.”

[2] Padre Gramacho se refere aqui ao terremoto que destruiu grande parte da cidade de Lisboa em 1º de novembro de 1755.

O documento original está no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal. Foi transcrito pelo historiador Inácio Accioli de Cerqueira Silva em “Memórias históricas e políticas da província da Bahia” [com notas de Braz do Amaral], publicado em Salvador, na gráfica do Correio Mercantil, em 1937 (a edição original é de 1835).















sábado, 10 de abril de 2010

Antonio de Brito Gramacho: engenheiro militar na Bahia



Antonio de Brito Gramacho, nascido por volta de 1690, era militar de carreira. Em 1711 foi destacado para sentar praça na Bahia, onde ficou pelo menos até 1741.

O Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal) conserva vários documentos que registram sua presença e atividades em terras brasileiras.

Em 1725 dirigiu ao rei de Portugal, D. João V, um requerimento solicitando o pagamento de seu soldo por serviços prestados como ajudante de engenheiro. Foi atendido.

Em 1733 recebe do mesmo rei a patente que o nomeia para o posto de Capitão Engenheiro. Foi preciso que o rei insistisse na indicação pois o Conde de Sabugosa, que era seu preposto na Bahia como “Vice-Rei e Governador Geral do Estado do Brasil” teria enviado carta a Lisboa argumentando contrariamente à nomeação. Não se sabe o por quê, talvez tivesse outro nome de sua predileção. O fato é que as arengas do conde não alteraram a escolha do rei, que mandou confirmar a patente.

No ano seguinte, 1734, o já agora Capitão-Engenheiro, garboso do posto e disposto a dele extrair tudo o que tinha direito, enviou novo requerimento a Sua Majestade, reclamando cavalos e as pertenças a que fazia jus, “da mesma forma como foi dado ao Capitão-Engenheiro da cidade da Bahia, Nicolau de Abreu Carvalho”, argumentava. Novamente foi atendido.

Em 1739 participou da fortificação da Ilha de Fernando de Noronha, que havia sido recuperada aos franceses dois anos antes. Foi designado pelo Governador da Capitania de Pernambuco e lá supervisionou a construção de duas pequenas fortalezas: o Forte de São João Batista dos Dois Irmãos, na Ponta dos Dois Irmãos, e o Forte de São Joaquim do Sudeste, na baía do sudeste .

O último registro que dele se encontrou data de 1741, em documento no qual se enumeram seus feitos ao longo da carreira militar. Uma espécie de “curriculum vitae”, elaborado provavelmente para acompanhar um pedido de aposentadoria ou mesmo para requerer o retorno à pátria-mãe num posto melhor remunerado. Seu teor é a seguir transcrito.

Antonio de Brito Gramacho consta haver servido S. Majestade na cidade da Bahia por espaço de vinte e oito anos, 11 meses e 1 dia continuados com interpolação desde 7 de dezembro de 1711 até 28 de Junho de 1741 em praça de Soldado, Cabo de Esquadra, Condestável mor da Artilharia, Gentil Homem dela, Ajudante Engenheiro e Capitão de Infantaria com o exercício de Engenheiro por Patente de S.Majestade de 3 de agosto de 1731 e no [ilegível] do referido tempo no ano de 1737 na ocasião em que se fizeram faxinas[1] pelo infantaria paga para reparos nas trincheiras e fortinho do Rio vermelho distante daquela cidade uma légua assistiu o suplicante nelas com grande atividade e zelo do Real serviço, visitando-as freqüentemente, indo também por ordem do Conde de Sabugosa assistir ao trabalho da fortificação do Morro de São Paulo fazendo que os empreiteiros daquela obra executassem as instruções que lho deixou o Capitão Engenheiro João Teixeira Araújo. Em 738 [sic] representando o Governador de Pernambuco ao Conde de Galveas, Vice Rei do Brasil que para desenhar as fortificações daquela Capitania necessitava de um Engenheiro ser [ilegível] nomeado para esta diligencia e passando com efeito a dita Capitania o mandar o Governador dela à Ilha de Fernando de Noronha para haver de acabar a fortificação, medir a dita ilha, examinar os seus portos, tirar plantas, o que fez com a exação possível, e com tanto acerto que conferiam os seus projetos já executados com o que apontou o Engenheiro-mor do Reino, experimentando em quase três anos, que esteve fora de sua casa, muitos descômodos.”

Dos fortes que construiu em Fernando de Noronha não restam sequer vestígios. O de Rio Vermelho, em Salvador, que existiu na praia onde por volta do ano 1510 o lendário Caramuru teria sido resgatado pelos índios, foi posto abaixo no século XX pela prefeitura local que ali erigiu uma nova Igreja dedicada a Santana. Restam apenas, em Morro de São Paulo, as ruínas de um forte, a Fortaleza de Tapirandu, cuja construção consta ter durado 100 anos, só concluída em 1730. Também teria se envolvido com obras em Morro de São Paulo e Rio Vermelho.

De acordo com o que se lê nos Anais da Biblioteca Nacional, v. 24, 1903, p.34 [versão online no site da BN] Antonio de Brito Gramacho era irmão do poeta Feliciano Dourado de Brito com quem estudou no colégio dos jesuítas, de Olinda, Pernambuco. Ambos filhos de Manoel de Brito Gramacho e de D. Isabel Dourada, sendo esta irmã de Salvador Quaresma Dourado, que foi provedor da fazenda real na Paraíba.

É provável que Antonio, assim como Feliciano, tenha nascido na Paraíba.

Antonio foi pai de Roberto de Brito Gramacho, personagem da próxima postagem.




Nota:
[1] Cf. o Dicionário Aurélio o termo “faxina” significa “feixe de ramos, ou de paus curtos, com que se entopem fossos ou se cobrem parapeitos de bateria, e usado para outros fins nas campanhas militares”


BIBLIOGRAFIA:
A.H.U. Conselho Ultramarino AULER, Guilherme “Os Fortes de Fernando de Noronha” Imp.Oficial, Recife, 1947, pp. 38-39.
COUTO, Domingos do Loreto. "Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco". Rio de Janeiro. Oficina Tipográfica da Biblioteca Nacional. 1904
OLIVEIRA, Mario Mendonça de. "As fortificações portuguesas de Salvador quando cabeça do Brasil". Salvador. 2004.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Brites de Paredes Gramacha, uma mestiça em Meriti (III)

O processo de Brites está no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal. São 48 folhas. Começou no dia 28 de outubro de 1715, quando foi presa, e foi encerrado no dia 20 de fevereiro de 1716, pelo auto-de-fé. Hoje se pode ter acesso ao inteiro teor desse processo através da internet. É so copiar e colar no seu browse o link abaixo:
 http://digitarq.dgarq.gov.pt/default.aspx?page=regShow&searchMode=bs&ID=2310867


Capa do processo nº 10.690

“Processo de Brites
de Paredes Gramacho,
um quarto de cristã nova,
casada com Agostinho Monteiro, alfaiate, na-
tural e moradora na cidade do Rio
de Janeiro.
Ano 60
Ano 1716
Nº 8º"


As folhas 5 a 10v contém a descrição das culpas de que era acusada;

As folhas 11 a 12v contém o inventário da ré, feito em e de novembro de 1715. Os valores apurados foram confiscados para cobrir as custas do processo e as penas financeiras que lhe foram impostas.
Entre os bens que disse possuir constou:
Um carpido de mandioca, junto da fazenda de Manuel de Paredes, no sítio de Sapopema [sic], que produzia 20$000 por ano;
Tinha 3 escravos: Antonio, 16 anos, 150$000; Catarina, 13 anos, 100$000; e João, 14 anos, 50$000 (valia menos por ser “quebrado”, ou aleijado);
Tinha uma arca grande que valia 6$000;
Tinha uma arca grande de gavetas, de pau jacarandá, valendo 4$000;
Tinha um leito de pau Brasil ... que valeria 6$000;
Tinha uma caixa de pau de louro, ou vinhático, que varia 3$000;
Não tinha nenhuma peça de ouro nem prata

A folha 13 contém o Termo de nomeação de um curador, para acompanhá-la nas sessões da inquisição, uma vez que era menor de 25 anos.

As folhas 14 a 20 contém sua confissão.

As folhas 21 a 24v contém as informações sobre sua genealogia, que evidenciavam a ascendência de cristãos novos por parte de sua mãe, Lourença Mendes.

Folha 21 - Genealogia

"Genealogia
Aos quinze dias do mes de
novembro de mil setecentos e
quinze anos, em Lisboa, nos
Estaus, casa de ... audi-
ências da Santa Inquisição ..."

Brites diz que seu pai se chamava João Mayo Gramacho, era cristão velho, caixeiro e trapicheiro;
diz que seus avós paternos, já defuntos, se chamavam, o avô, João Mayo Gramacho [como o pai], cristão velho, capitão de "navio de porto", e que não sabia o nome da avó. E lhe parecia que eram ambos naturais da cidade do Porto, em Portugal.
Diz, também, não saber da existência de tios paternos.
Diz que de seu casamento com Agostinho Monteiro, cristão velho, nascido e morador no Rio de Janeiro, não tinha filhos.
Diz que era cristã, fora batizada na paróquia de Irajá, Rio de Janeiro, tendo por padrinho Agostinho de Paredes.

As folhas 25 a 41v contém novas confissões.

As folhas 43 a 45 contém a sentença.

A folha 46 contém a "Abjuração em forma"

Folha 46: Têrmo de abjuração, assinado por Brites e pelo curador
que lhe foi designado.


A folha 47 contém o "Termo de segredo"



A folha 48 contém o Termo de Ida e Penitência, última peça do processo.

Fl. 48: Termo de Ida e Penitência, datado de 20/02/1716


O processo de sua mãe, Lourença Mendes, também pode ser visto pela internet através do link: http://digitarq.dgarq.gov.pt/default.aspx?page=regShow&searchMode=bs&ID=2304963

Os historiadores não dão conta do que se passou com aqueles condenados do santo ofício. Se foram obrigados a cumprir suas penas em Portugual, se por lá ficaram, ou se conseguiram algum indulto para voltar ao Brasil, embora já espoliados da totalidade dos seus bens. Não é de todo improvável, contudo, que esses mesmos personagens se tornem a referência mais plausível para explicar o surgimento, algumas décadas mais tarde, de um outro Gramacho, um pouco mais ao norte daquela mesma região, nas margens do rio Sarapuí: o Capitão João Pereira Lima Gramacho. E que este capitão, afinal, de cujos feitos pouco se conhece, tenha sido o que deixou sua presença mais perene na região ao fazer com que seu nome fosse utilizado para batizar a estação da estrada de ferro que cortava a região e, muito mais tarde, ser aplicado ao atual bairro de “Jardim Gramacho” no município de Duque de Caxias.

Mas isto já é outra história.

domingo, 4 de abril de 2010

Brites de Paredes Gramacha, uma mestiça em Meriti (II)

(continuação)

Um auto-de-fé

Os velhos preconceitos continuavam presentes e fortes na vida da distante metrópole lusitana. São esses preconceitos que irão lançar uma nova onda inquisitória em Portugal e cujos tentáculos se estenderão além Atlântico. Já no ano de 1700 os inquisidores conseguiram por as mãos em alguns brasileiros desavisados que tinham ido para Lisboa[1] . E, usando de intimidação ou tortura, iam fazendo com que, pouco a pouco, os nomes dos parentes na colônia começassem a ser citados para os autos. Da citação viriam as ordens de prisão.

Alguns anos depois as famílias Paredes, Ximenes, Mendes, e quase todas as que lhes estavam associadas por laços de parentesco começaram a sofrer as perseguições. Todos estabelecidos na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Os navios traziam os mandatos de prisão. Começava o calvário dos condenados: primeiro, o cárcere no Brasil, depois a viagem de navio, novo cárcere na capital do reino, até o dia de realização do auto-da-fé, a espetaculosa procissão em praça pública onde assumiriam seus pecados, suas penitências, ou a morte no garrote ou fogueira.

Brites Gramacha e sua mãe Lourença foram sentenciados em 1716. Muitos dos que viviam à sua volta a antecederam na prisão e na viagem para o reino. Inclusive o rico João Correa Ximenes e sua mulher, por exemplo, que foram presos em 1709, no Rio de Janeiro, e julgados no auto-da-fé de 1713, em Lisboa, e ambos condenados. No mesmo auto outros 77 parentes foram julgados.

Brites e sua mãe, junto com outros 35 parentes, foram acusadas de professar a fé judaica. Foram presas em 28 de abril de 1715, envolvidas numa rede de acusações sob tortura que os inquisidores acumulavam desde 1713. Brites, foi denunciada por 24 testemunhas, a mãe por outras 33[2]. No auto-de-fé de 16/02/1716 realizado no Convento de São Domingos, em Lisboa, a jovem foi punida com cárcere e hábito por tempo a arbítrado pelos inquisidores, enquanto a mãe sofreu pena de cárcere e hábito perpétuo[3].

Agostinho Monteiro, marido de Brites, também havia sido acusado em 1713 de ser cristão-novo, mas seu processo não foi levado avante, reconhecendo-se sua origem como cristão-velho[4].

No total, de acordo com os registros disponíveis, entre os anos de 1700 e 1723 foram levados aos tribunais do santo ofício 305 pessoas oriundas do Brasil. Desses, nada menos do que 143 eram parentes de Antonio José da Silva, que ficou posteriormente conhecido pela alcunha de “o Judeu”.[5]

Mas há outros registros importantes daquela época para além dos autos do santo ofício. Fatos que estavam acontecendo naquele pedaço da colônia, que fizeram parte da vida daquela gente e que haviam de ficar gravados na história.

Brites Gramacha teria apenas um ano de vida em 1697, ano que é considerado como o da descoberta do ouro das "minas gerais". Ouro que dali por diante viria a passar a poucas léguas ao norte de Meriti, para alcançar os portos dos rios Iguaçu e Estrela e depois seguir, por mar, para o Rio de Janeiro. E o ouro era tanto e tantos os perigos que passava que o vice-rei mandou abrir um caminho mais curto e seguro para os tropeiros que vinham das minas[6]. Incumbiu para a missão ninguém menos que Garcia Rodrigues Pais, filho do famoso Fernão Dias Paes Leme, o “descobridor das esmeraldas”. Em 1699, Garcia concluiu o seu trabalho ao estabelecer o que ficou chamado como o “Caminho Novo do Pilar” que reduzia a viagem das Minas ao Rio, de três meses para apenas 15 dias.

Brites já estava casada e andaria preocupada com as notícias das prisões pelo santo ofício de gente que lhe era próxima, quando ouviu os relatos das duas invasões de piratas franceses à capital do reino, atraídos pelo ouro. O primeiro foi Jean François Duclerc, em 1710, cuja tropa foi derrotada e Duclerc aprisionado e, depois, assassinado. O segundo foi René Duguay-Trouin, que chegou no ano seguinte e fez com que o governador assustado com a rapidez do ataque e o tamanho da frota francesa fugisse com suas tropas para os campos de Meriti e Iguaçu. Foi acusado de covardia mas alegou em sua defesa que era ali que melhor poderia defender os caminhos que levavam ao ouro. A “estratégia” deixou a cidade completamente à mercê do francês. Trouin aproveitou para libertar os presos que encontrou num convento dos jesuítas, entre os quais estava o já mencionado João Correa Ximenes, tio-avô de Brites Gramacha, que aguardava o navio que o levaria para o julgamento em Portugal. Enquanto outros presos aproveitaram para fugir quando os navios de Trouin fizeram-se ao mar carregando o valioso resgate que arrancaram do governador fugido, Ximenes e a mulher deixaram-se ficar. Mas nem por isso ganharam o beneplácito do santo ofício. Suas propriedades como as de muitos outros, foram confiscadas pelo novo governador e depois utilizadas para ressarcir os gastos que a fazenda pública teve com o pagamento exigido pelo corsário francês. Muitas dessas fazendas e engenhos acabaram sendo arrendadas aos proprietários vizinhos e é muito provável que tenham sido, mais tarde, incorporadas aos seus patrimônios. O que não se sabe é se todos aqueles condenados, ao fim do cumprimento das penas que lhes foram impostas, voltaram ao Brasil para retomar suas atividades ou se ficaram em Portugal. Ou mesmo se buscaram outros destinos, à distância mais segura dos tentáculos dos inquisidores de Portugal e Espanha.

Levaria ainda cerca de meio século para que o Marques de Pombal acabasse com a ação inquisitória em Portugal e nas suas colônias.

Notas:

[1] Catarina Soares Brandoa é citada como a principal delatora do grupo, tendo como base os presentes a uma festa de casamento ocorrida anos antes, em 1694, “as bodas de Irajá”, onde eram nubentes Manuel Paredes da Silva e Catarin Marques Henriques. Cf. Dines, Alberto, op. cit. p 428.

[2] Cf. Novinsky, Anita. “Inquisição – Rol dos Culpados – Fontes para a História do Brasil (Séculos XVIII), Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1992, pp 126 e 167.

[3] Cárcere a arbítrio: prisão breve (podia ser domiciliar) a critério dos inquisidores, para que o réu fosse instruído nos mistérios da fé. Cárcere perpétuo: prisão de três a cinco anos, a domicílio ou no degredo. A pena do “hábito” refere-se ao uso do “sambenito”, hábito penitencial na forma de um saco vermelho com grandes cruzes, em amarelo, às costas e à frente.

[4] Cf. Novinsky, A. Op.cit;  pp 3.

[5] Cf. Dines, A. Op. cit.

[6] Consta que já em 1699 a Coroa de Portugal teria recebido 725 kg do precioso metal originário do Brasil.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Brites de Paredes Gramacha, uma mestiça em Meriti (I)

Brites de Paredes Gramacha não chegou a ser uma personagem da história do Brasil. Mesmo assim, seu nome ficou registrado em quase todos os estudos que se referem aos processos da nefanda “inquisição do santo ofício” que perseguiu durante a primeira metade do século XVIII os adeptos do judaísmo no Rio de Janeiro e cujo episódio mais conhecido foi a condenação à fogueira, em 1739, de Antonio José da Silva, o primeiro dramaturgo nascido no Brasil.

As perseguições e processos contra o judaísmo já vinham de longe, desde o século XV, na Espanha, e XVI em Portugal. Emigrar para as colônias distantes era uma saída quase sempre segura, mas vez por outra os tentáculos dos perseguidores eram lançados sobre os seus esconderijos tropicais nas Américas. No inicio do século XVIII um desses tentáculos abalou uma tranqüila e próspera comunidade que habitava os arredores do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense. Quase todos eles eram familiares de Antonio José da Silva. Toda essa história foi magnificamente narrada por Alberto Dines em "Vínculos de Fogo"[1].

Brites, que era um nome muito comum nos primeiros séculos da língua portuguesa e que depois foi modernizado para Beatriz, nasceu por volta de 1696 em alguma das muitas fazendas de cana-de-açúcar que se tinham instalado na Baixada, na margem ocidental da baía de Guanabara[2]. Nessa região estão hoje os bairros de Irajá e Pavuna, na capital carioca, e os municípios de São João de Meriti e Duque de Caxias, no estado do Rio. Gramacha era seu sobrenome, porque era filha de João Maio Gramacho, e porque naquele tempo era comum aplicar a desinência de gênero nos apelidos de família[3]. Seu pai era nascido no Rio de Janeiro e trabalhava como caixeiro e tinha trapiche de açúcar. Seu avô paterno tinha o mesmo nome, havia sido capitão de navio e constava ter nascido em Portugal. A avó também seria portuguesa.

A mãe de Brites era a mulata Lourença Mendes (de Paredes), nascida no Rio de Janeiro por volta de 1668, era filha do senhor de engenho Rodrigo Mendes de Paredes (falecido em 1698) com a preta forra Úrsula, de origem da Guiné. Lourença e João Maia Gramacho haviam se casado a 22 de outubro de 1688[4].

Lourença tinha outros seis irmãos, filhos de Rodrigo e Úrsula, três meio-irmãos, filhos de Rodrigo com Francisca, uma preta forra nascida em Angola, além de outros quatro meio-irmãos, filhos do mesmo Rodrigo com Maria de Gallegos, a esposa legítima[5]. Era preciso povoar o Brasil!

Lourença era prima, por parte de pai, de Brites de Paredes, casada com um dos senhores de engenho mais ricos daquela região, o também tabelião João Correa Ximenes. Homem importante nos negócios e que estava também preocupado em estimular a fé dos que viviam à sua volta, foi esse Ximenes quem mandou construir em suas terras (num local onde se encontra a atual Pavuna) uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Mas o Santo Ofício diria que se tratava apenas de fachada para encobrir os ritos da fé condenada.

Fachada ou não, foi nessa capela, no dia 6 de março de 1707, que Brites Gramacha casou-se com o alfaiate Agostinho Monteiro Mexia, mestiço, natural de Inhaúma, alfaiate de profissão, e que havia sido capitão de um batalhão de homens pardos[6]. Foi celebrante, o reverendo Padre Bernardo de Almeida. Brites tinha, então, apenas 12 anos.

O casamento de Brites e Agostinho era algo natural e sempre bem vindo. Havia muita terra para povoar. Mais do que isso, era um exemplo daquilo que viria a se tornar a principal característica da formação cultural da colônia: mestiçagem racial, pluralismo religioso. Avô paterno português, avós maternos de ascendência espanhola e africana; uns cristãos-velhos, outros cristãos-novos ou judeus, outros, ainda, seguidores de ritos africanos; brancos, pretos, pardos. O que leva a crer que a aventura nos trópicos para a busca da riqueza não dava espaço para velhos preconceitos.



Notas:

[1] Dines, Alberto “Vínculos do Fogo: Antonio José da Silva, o Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil”, Companhia das Letras, 1992, S.Paulo, 1054 pp;


[2] Cf. Rheingantz, Carlos. “Primeiras Famílias do Rio de Janeiro (Séculos XVI e XVII), vol. II, p. 513. Brasiliana, 1965, Rio de Janeiro.

[3] Idem, p. 513. As grafias “Gramacho” e “Gramaxo” são variações do mesmo patronímico.

[4] Idem.

[5] Cf. Dines, Alberto, op. cit., apéndice 1. Esta Úrsula não é a mesma escrava pela qual disputaram em 1712 José de Barros e José Correia Ximenes. Esta teria nascido por volta de 1690, aquela em torno de 1650. Ver Silva, Lina Gorenstein F. da, “Heréticos e Impuros: A Inquisição e os Cristãos-Novos no Rio de Janeiro – Século XVIII”, R.Janeiro, 1955.

[6] Algumas fontes mencionam que a capela teria sido construída em 1708. O registro do casamento de Brites e Agostinho, existente nos Arquivos da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, livro 348, fls. 32v, da Freguesia de N. Sra. Da Apresentação de Irajá, diz que o casamento foi realizado no dia 6 de março de 1707, no oratório de N. Sra. Da Conceição, pelo Padre Bernardo de Almeida.