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segunda-feira, 3 de maio de 2010

Romão Gramacho e a Igreja de N. S. da Oliveira dos Campinhos

O texto que se segue é de autoria do jornalista e historiador santamarense Sergio Cardozo e foi retirado de um artigo publicado no Diário de Notícias da Bahia em 21 de setembro de 1929 (p.2). Ele contestava algumas versões fantasiosas sobre a vida de Romão e apresentava novos dados para a sua biografia e sobre a história da igreja de N. S. de Oliveira dos Campinhos:

“(...) A sua fundação é devida a Romão Gramacho Falcão, que a mandou edificar à sua custa sendo o encarregado da obra o então vigário da freguesia.

Sobre o fato de ter sido o templo levantado à beira da bacia que ocupa o centro do arraial, quando imensa planura se estende por quase todos os lados, com a lenda de que o fundador marcara aquele lugar por haver descansado ali, à sombra de umas coeraneiras [1], em dia brumal de sua tormentosa existência, quando passou escoltado por escravos de seu progenitor, que o prendera por desobediências cometidas; outros, porém, afirmam ser isto devido à ignavia [2] do vigário, que, sendo obrigado a fiscalizar os trabalhos, escolheu o ponto mais próximo de sua habitação.

Romão Gramacho, que fugiu muito moço da casa paterna, levando consigo um ou mais escravos, andou garimpando por Minas e pelos nossos sertões e enriqueceu, talvez na mineração do salitre, em que se ocupou até poucos anos antes de falecer, como se verá pelo seguinte trecho de uma carta sua, que conservamos em nossa coleção de autógrafos:

“Eu na sid.e pasey mal de saúde e aqui não menos padeso dela p.r pecados meos que o não se moderarem as couzas usarey di remédios p.a me aliviar por algum tempo, as minhas pretençones não pode ter ifeito sem a conseção de alguas regalias nesesaria p.a o eizersisio da mineração do salitre q ajustey por na sidade a dezoito mil reis ao quintal já refinado consedendoseme as d.as regalias que p.r falta desta ficõ esperado o eizersisio da negosiaação que sabe Deos coal será o resulta.”

Este trecho está copiado fielmente.

A carta refere-se mais à prisão de ladrões de cavalos e punição dos mesmos e é datada de “Olivra.” (Oliveira) 23 de abril de 1767, cinco anos antes, portanto, do seu falecimento.

A primeira pedra da igreja foi lançada no dia 5 de janeiro de 1768, em presença do vigário Manuel Correia Franco e dos padres Francisco Araújo e Felix Blanto.

Romão Gramacho, conformemente sua última vontade, foi inumado na igreja de Oliveira, sendo sobre sua sepultura colocada uma pedra de 1 m. e 47 cm. de comprimento, 60 cm. de largura e 22 cm. de grossura.

A lápide tem a seguinte inscrição, ao que corre, abertos os três primeiros algarismos pelo próprio Gramacho, que dizia ter o pressentimento de não ultrapassar sua existência aquele decênio:

“Aqui jaz
Romão
Peccador
Escravo de
N.S.da Oliveira
1772”


O último número, gravado após sua morte, mal se lê.


A pedra foi retirada do seu lugar por ocasião de serem substituídas, por tijolos Ferrari, as tábuas que cobriam as tumbas do corpo da igreja, como era de uso antigo e fomos encontrá-la ao lado norte da mesma, à porta de um corredor lateral, bastante danificada pelo tempo e com a inscrição voltada para o chão.

Logo, porém, que assumiu as funções de pároco de Oliveira, o inteligente e zeloso sacerdote Acylino Alves Pimenta [3], mandou recolhe-la e colocá-la ao pé da escada que dá acesso ao púlpito do lado direito.

Não conseguimos tirar a limpo se Gramacho nascera em Oliveira ou em Mercês, comarca de Cachoeira, mas, pelo seu nome de família, Falcão, é de crer que fosse na última localidade, aliás muito próxima de Oliveira e onde tem ainda parentes.

Acresce ter sido também ele o fundador da igreja das Mercês, se bem que nela nenhuma inscrição ou vestígio encontramos para confirmar a tradição.

Romão Gramacho andou sempre arredado pelos sertões e, se não nos falha a memória, nas imediações de Brejo Grande, hoje Ituassú, em caminho para uma grande e curiosa gruta, deixou ele o seu nome – vereda de Romão Gramacho – por onde, provavelmente, andou peregrinando.

Era dessa tempera rija de aventureiros audazes, a quem os sertões refertos [4] de insídias não assombravam e que tanto concorreram para desbravá-los; fevera [5] daqueles bandeirantes de que tanto se orgulha São Paulo, não privilégio seu, pois entre nossa gente também os houve e dos mais decididos e destemerosos.

Sergio Cardozo”

Notas:

[1] coeraneira (ou coerana): planta cujo nome científico é “cestrum nocturnum”, vulgarmente conhecida como dama-da-noite ou jasmim.

[2] ignavia: s.f. Qualidade de ignavo; indolência, preguiça; negligência. / Covardia (cf. Dicionário Aurélio)

[3] padre Acilino ( ou Acylino) Alves Pimenta, foi pároco de Oliveira dos Campinhos de 1º de novembro de 1914 a 12 de julho de 1970, data em que faleceu. Encontra-se sepultado no interior da igreja.

[4] refertos; o dicionário de Morais Silva traz essa palavra, a que dá o sentido de “elucidar” que não parece condizer com o texto presente.

[5] fevera: “febra” ou “fibra” (cf. Moraes Silva, Antonio. “Diccionário da Língua Portugueza”, Lisboa. 1813. p. 28; disponivel online em www.ieb.usp.br)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Romão Gramacho Falcão, sertanista

No grupo dos primeiros Gramachos da Bahia foi este o que deixou impressões mais fortes na história local, seja na toponímia seja no folclore.

É provável que tenha nascido por volta de 1710.

Foi certamente um aventureiro, caçador incansável de minérios nos sertões das Minas Gerais e da Bahia, tendo deixado inúmeros registros de sua passagem por aqueles rincões na rica tradição oral do povo baiano. O nome de Romão Gramacho aparece associado como precursor da fundação de várias cidades do interior de Minas Gerais e da Bahia, todas em áreas onde a mineração esteve na origem dos primeiros povoamentos. São os casos, além das citadas, de Itambé do Mato-Dentro, Morro do Chapéu, Jacobina, dentre outras. Romão Gramacho é, atualmente, nome de rua em várias cidades do interior baiano. Entretanto, o lugar mais importante a que seu nome está associado é o da Rio dos Brejões, ou Vereda “Romão Gramacho”, onde se situa um belíssimo parque natural com uma caverna que ostenta um pórtico de mais de 100 metros de altura, imensos salões formados na rocha natural em cujas paredes se pode encontrar inscrições rupestres de antigos habitantes da região. Trata-se de uma APA – Área de Proteção Ambiental sob controle do IBAMA, e fica próxima a cidade de Irecê.

Freqüentemente citado como fundador ou precursor da fundação de várias cidades nesses estados, em nenhuma dessas referências se menciona qualquer fonte documental. Essa condição, associado ao fato de ter entrado para o folclore baiano numa curiosa história envolvendo a construção de uma igreja, o colocavam, até aqui como um personagem lendário.

Afonso Costa atribuíu ao santamarense Sérgio Cardoso, num texto jornalístico de 1929, a divulgação de uma biografia do sertanista, na qual se afirma que Romão era filho de uma conceituada família do recôncavo da baía de Todos os Santos, de onde teria fugido ainda jovem levando consigo um escravo [1] . Teria regressado para a sua terra natal muitos anos depois, rico, para dedicar-se a construção de uma ou duas igrejas em Oliveira dos Campinhos, um distrito de Santo Amaro. Ali teria falecido no ano de 1772.

Os documentos do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, ainda que episódicos, nos permitem reconstituir melhor sua biografia e dar consistência ao personagem e fazer justiça à sua fama.

O primeiro registro que se refere à Romão data de 1738. Naquela altura, já Sargento-Mor, lhe foi emitida certidão de que apresentara ao Vice-Rei do Brasil, Conde de Galveas, os seus papéis de serviços até aquela data. Não seriam poucos, pois o documento menciona que estavam relacionados em nada menos que trinta e duas páginas.

Em 1743 apresenta requerimento dirigido ao Rei D. João V solicitando confirmação da patente no posto de Capitão do Sertão dos distritos de Itacambira, Rio Verde, Rio Pardo, Gorutuba e os que ficam entre estes e o Jequitinhonha.

Em 1767 está às voltas com negócios de salitre discutindo o preço com o comprador, Francisco Xavier de Mendonça, com a intervenção do Governador Geral da Província da Bahia, Conde de Azambuja que já não ostentava mais o título de Vice Rei pois a sede do reino havia sido transferida para o Rio de Janeiro em 1763. O comprador seria, provavelmente, Francisco Xavier de Mendonça Furtado que já havia ocupado o posto de Governador da Província do Grão-Pará e era irmão do Marques de Pombal, o todo poderoso ministro de D. José. Na época estava em Portugal, ocupando o Ministério da Secretaria de Estado. Vale a pena transcrever esse documento que revela a opinião do Conde sobre seu interlocutor ao resumir para o interessado o resultado das negociações.



“Ilustríssimo Capitão General

Falei com efeito a Romão Gramacho na forma do aviso de V.Excia. de julho do ano passado, sobre o salitre, assistindo também à conferência o Desembargador Intendente do Ouro. Lendo o dito Romão o que V. Excia. diz, respondeu que não teria dúvida em vender o quintal de salitre, nesta cidade, a dezoito mil réis, correndo as quebras por sua conta. Mas como isso passou de palavra, lhe disse, reduziu o mesmo que propunha a papel, o que ainda não fez por haver poucos dias depois da conferência. Mas também o mesmo Gramacho me requereu que nestes primeiros dois anos não podia fazer coisa nenhuma em razão de uma obra que traz entre as mãos que é uma capela que prometeu a Nossa Senhora, juntamente que necessitava de tratar isto também com os sócios que haviam de ser da mesma diligência.

O Intendente se lembrou de que nas Minas Gerais, principalmente para a banda do Serro do Frio, se tira salitre e se persuade que os homens de lá o poderão dar em melhor conta, pela facilidade da condução, porque como na estrada das Minas andam conduzindo cargas de fazenda tantos mil cavalos, esses, na torna viagem, poderão carregar o salitre com menos custo e também acham as estradas já abertas, o que por cá não há.

À vista disso lhe dei uma cópia da carta de V. Excia e das quebras que teve o salitre que daqui foi, para ele escrever para as Minas e poder nos homens de lá botar a conta à conveniência que lhe faz.

Assim, me parece será conveniente esperar pela resposta, pois além do que fica dito, como Romão Gramacho mete tanto tempo em meio e é já muito velho, poderá faltar-lhe a vida no meio da diligência e, por outra parte, ainda que respondeu o que acabo de referi, sempre me parece que lhe não ficou muito fixo nisto, e que o tempo que pede será talvez com o fim de intentar por outra parte algum requerimento, porque estes homens de Minas são todos muito espertos e sabichões, e o tal Romão Gramacho tem opinião de não ceder nessa parte a ninguém.

Bahia, 29 de março de 1767

Conde de Azambuja”



Não há duvida que esse documento traz algumas informações importantes para comprovar as informações do jornalista santamarense Sérgio Cardoso, acima citado. É ninguém menos que o Conde de Azambuja a relatar a avançada idade do sertanista, apesar de ainda hábil e esperto negociador, e seu compromisso de construir uma igreja. Como o encontro foi em Salvador é bastante provável que o idoso Romão vivesse nas proximidades, muito possivelmente, na sua Oliveira dos Campinhos cerca de 50 km de distância da capital.

A igreja de Oliveira dos Campinhos, cuja estrutura original o tempo arruinou, datava de 1718. Sua reconstrução consta ter sido iniciada no ano de 1768 e suas torres ligeiramente convergentes deram suporte à lenda de que foram produto de um violento coice do diabo quando se viu enganado pelo esperto Romão. Desde 1942 a igreja está tombada pelo IPHAN.

Interior da igreja de N. S. da Oliveira, em Campinhos, BA
(Foto do autor, 2004)
Lápide sobre o túmulo de Romão Gramacho Falcão
Igreja de N. S. da Oliveira, Campinhos, BA
(foto do autor, 2004)


Nota:
[1] Cf. Costa, Afonso “De como nasceu, se organizou e vive minha cidade (Jacobina)”, in Anais do IV Congresso de História Nacional, Vol. 9, pp. 181-384, IHGB, Rio de Janeiro, 1949