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terça-feira, 6 de abril de 2010

Brites de Paredes Gramacha, uma mestiça em Meriti (III)

O processo de Brites está no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal. São 48 folhas. Começou no dia 28 de outubro de 1715, quando foi presa, e foi encerrado no dia 20 de fevereiro de 1716, pelo auto-de-fé. Hoje se pode ter acesso ao inteiro teor desse processo através da internet. É so copiar e colar no seu browse o link abaixo:
 http://digitarq.dgarq.gov.pt/default.aspx?page=regShow&searchMode=bs&ID=2310867


Capa do processo nº 10.690

“Processo de Brites
de Paredes Gramacho,
um quarto de cristã nova,
casada com Agostinho Monteiro, alfaiate, na-
tural e moradora na cidade do Rio
de Janeiro.
Ano 60
Ano 1716
Nº 8º"


As folhas 5 a 10v contém a descrição das culpas de que era acusada;

As folhas 11 a 12v contém o inventário da ré, feito em e de novembro de 1715. Os valores apurados foram confiscados para cobrir as custas do processo e as penas financeiras que lhe foram impostas.
Entre os bens que disse possuir constou:
Um carpido de mandioca, junto da fazenda de Manuel de Paredes, no sítio de Sapopema [sic], que produzia 20$000 por ano;
Tinha 3 escravos: Antonio, 16 anos, 150$000; Catarina, 13 anos, 100$000; e João, 14 anos, 50$000 (valia menos por ser “quebrado”, ou aleijado);
Tinha uma arca grande que valia 6$000;
Tinha uma arca grande de gavetas, de pau jacarandá, valendo 4$000;
Tinha um leito de pau Brasil ... que valeria 6$000;
Tinha uma caixa de pau de louro, ou vinhático, que varia 3$000;
Não tinha nenhuma peça de ouro nem prata

A folha 13 contém o Termo de nomeação de um curador, para acompanhá-la nas sessões da inquisição, uma vez que era menor de 25 anos.

As folhas 14 a 20 contém sua confissão.

As folhas 21 a 24v contém as informações sobre sua genealogia, que evidenciavam a ascendência de cristãos novos por parte de sua mãe, Lourença Mendes.

Folha 21 - Genealogia

"Genealogia
Aos quinze dias do mes de
novembro de mil setecentos e
quinze anos, em Lisboa, nos
Estaus, casa de ... audi-
ências da Santa Inquisição ..."

Brites diz que seu pai se chamava João Mayo Gramacho, era cristão velho, caixeiro e trapicheiro;
diz que seus avós paternos, já defuntos, se chamavam, o avô, João Mayo Gramacho [como o pai], cristão velho, capitão de "navio de porto", e que não sabia o nome da avó. E lhe parecia que eram ambos naturais da cidade do Porto, em Portugal.
Diz, também, não saber da existência de tios paternos.
Diz que de seu casamento com Agostinho Monteiro, cristão velho, nascido e morador no Rio de Janeiro, não tinha filhos.
Diz que era cristã, fora batizada na paróquia de Irajá, Rio de Janeiro, tendo por padrinho Agostinho de Paredes.

As folhas 25 a 41v contém novas confissões.

As folhas 43 a 45 contém a sentença.

A folha 46 contém a "Abjuração em forma"

Folha 46: Têrmo de abjuração, assinado por Brites e pelo curador
que lhe foi designado.


A folha 47 contém o "Termo de segredo"



A folha 48 contém o Termo de Ida e Penitência, última peça do processo.

Fl. 48: Termo de Ida e Penitência, datado de 20/02/1716


O processo de sua mãe, Lourença Mendes, também pode ser visto pela internet através do link: http://digitarq.dgarq.gov.pt/default.aspx?page=regShow&searchMode=bs&ID=2304963

Os historiadores não dão conta do que se passou com aqueles condenados do santo ofício. Se foram obrigados a cumprir suas penas em Portugual, se por lá ficaram, ou se conseguiram algum indulto para voltar ao Brasil, embora já espoliados da totalidade dos seus bens. Não é de todo improvável, contudo, que esses mesmos personagens se tornem a referência mais plausível para explicar o surgimento, algumas décadas mais tarde, de um outro Gramacho, um pouco mais ao norte daquela mesma região, nas margens do rio Sarapuí: o Capitão João Pereira Lima Gramacho. E que este capitão, afinal, de cujos feitos pouco se conhece, tenha sido o que deixou sua presença mais perene na região ao fazer com que seu nome fosse utilizado para batizar a estação da estrada de ferro que cortava a região e, muito mais tarde, ser aplicado ao atual bairro de “Jardim Gramacho” no município de Duque de Caxias.

Mas isto já é outra história.

domingo, 4 de abril de 2010

Brites de Paredes Gramacha, uma mestiça em Meriti (II)

(continuação)

Um auto-de-fé

Os velhos preconceitos continuavam presentes e fortes na vida da distante metrópole lusitana. São esses preconceitos que irão lançar uma nova onda inquisitória em Portugal e cujos tentáculos se estenderão além Atlântico. Já no ano de 1700 os inquisidores conseguiram por as mãos em alguns brasileiros desavisados que tinham ido para Lisboa[1] . E, usando de intimidação ou tortura, iam fazendo com que, pouco a pouco, os nomes dos parentes na colônia começassem a ser citados para os autos. Da citação viriam as ordens de prisão.

Alguns anos depois as famílias Paredes, Ximenes, Mendes, e quase todas as que lhes estavam associadas por laços de parentesco começaram a sofrer as perseguições. Todos estabelecidos na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Os navios traziam os mandatos de prisão. Começava o calvário dos condenados: primeiro, o cárcere no Brasil, depois a viagem de navio, novo cárcere na capital do reino, até o dia de realização do auto-da-fé, a espetaculosa procissão em praça pública onde assumiriam seus pecados, suas penitências, ou a morte no garrote ou fogueira.

Brites Gramacha e sua mãe Lourença foram sentenciados em 1716. Muitos dos que viviam à sua volta a antecederam na prisão e na viagem para o reino. Inclusive o rico João Correa Ximenes e sua mulher, por exemplo, que foram presos em 1709, no Rio de Janeiro, e julgados no auto-da-fé de 1713, em Lisboa, e ambos condenados. No mesmo auto outros 77 parentes foram julgados.

Brites e sua mãe, junto com outros 35 parentes, foram acusadas de professar a fé judaica. Foram presas em 28 de abril de 1715, envolvidas numa rede de acusações sob tortura que os inquisidores acumulavam desde 1713. Brites, foi denunciada por 24 testemunhas, a mãe por outras 33[2]. No auto-de-fé de 16/02/1716 realizado no Convento de São Domingos, em Lisboa, a jovem foi punida com cárcere e hábito por tempo a arbítrado pelos inquisidores, enquanto a mãe sofreu pena de cárcere e hábito perpétuo[3].

Agostinho Monteiro, marido de Brites, também havia sido acusado em 1713 de ser cristão-novo, mas seu processo não foi levado avante, reconhecendo-se sua origem como cristão-velho[4].

No total, de acordo com os registros disponíveis, entre os anos de 1700 e 1723 foram levados aos tribunais do santo ofício 305 pessoas oriundas do Brasil. Desses, nada menos do que 143 eram parentes de Antonio José da Silva, que ficou posteriormente conhecido pela alcunha de “o Judeu”.[5]

Mas há outros registros importantes daquela época para além dos autos do santo ofício. Fatos que estavam acontecendo naquele pedaço da colônia, que fizeram parte da vida daquela gente e que haviam de ficar gravados na história.

Brites Gramacha teria apenas um ano de vida em 1697, ano que é considerado como o da descoberta do ouro das "minas gerais". Ouro que dali por diante viria a passar a poucas léguas ao norte de Meriti, para alcançar os portos dos rios Iguaçu e Estrela e depois seguir, por mar, para o Rio de Janeiro. E o ouro era tanto e tantos os perigos que passava que o vice-rei mandou abrir um caminho mais curto e seguro para os tropeiros que vinham das minas[6]. Incumbiu para a missão ninguém menos que Garcia Rodrigues Pais, filho do famoso Fernão Dias Paes Leme, o “descobridor das esmeraldas”. Em 1699, Garcia concluiu o seu trabalho ao estabelecer o que ficou chamado como o “Caminho Novo do Pilar” que reduzia a viagem das Minas ao Rio, de três meses para apenas 15 dias.

Brites já estava casada e andaria preocupada com as notícias das prisões pelo santo ofício de gente que lhe era próxima, quando ouviu os relatos das duas invasões de piratas franceses à capital do reino, atraídos pelo ouro. O primeiro foi Jean François Duclerc, em 1710, cuja tropa foi derrotada e Duclerc aprisionado e, depois, assassinado. O segundo foi René Duguay-Trouin, que chegou no ano seguinte e fez com que o governador assustado com a rapidez do ataque e o tamanho da frota francesa fugisse com suas tropas para os campos de Meriti e Iguaçu. Foi acusado de covardia mas alegou em sua defesa que era ali que melhor poderia defender os caminhos que levavam ao ouro. A “estratégia” deixou a cidade completamente à mercê do francês. Trouin aproveitou para libertar os presos que encontrou num convento dos jesuítas, entre os quais estava o já mencionado João Correa Ximenes, tio-avô de Brites Gramacha, que aguardava o navio que o levaria para o julgamento em Portugal. Enquanto outros presos aproveitaram para fugir quando os navios de Trouin fizeram-se ao mar carregando o valioso resgate que arrancaram do governador fugido, Ximenes e a mulher deixaram-se ficar. Mas nem por isso ganharam o beneplácito do santo ofício. Suas propriedades como as de muitos outros, foram confiscadas pelo novo governador e depois utilizadas para ressarcir os gastos que a fazenda pública teve com o pagamento exigido pelo corsário francês. Muitas dessas fazendas e engenhos acabaram sendo arrendadas aos proprietários vizinhos e é muito provável que tenham sido, mais tarde, incorporadas aos seus patrimônios. O que não se sabe é se todos aqueles condenados, ao fim do cumprimento das penas que lhes foram impostas, voltaram ao Brasil para retomar suas atividades ou se ficaram em Portugal. Ou mesmo se buscaram outros destinos, à distância mais segura dos tentáculos dos inquisidores de Portugal e Espanha.

Levaria ainda cerca de meio século para que o Marques de Pombal acabasse com a ação inquisitória em Portugal e nas suas colônias.

Notas:

[1] Catarina Soares Brandoa é citada como a principal delatora do grupo, tendo como base os presentes a uma festa de casamento ocorrida anos antes, em 1694, “as bodas de Irajá”, onde eram nubentes Manuel Paredes da Silva e Catarin Marques Henriques. Cf. Dines, Alberto, op. cit. p 428.

[2] Cf. Novinsky, Anita. “Inquisição – Rol dos Culpados – Fontes para a História do Brasil (Séculos XVIII), Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1992, pp 126 e 167.

[3] Cárcere a arbítrio: prisão breve (podia ser domiciliar) a critério dos inquisidores, para que o réu fosse instruído nos mistérios da fé. Cárcere perpétuo: prisão de três a cinco anos, a domicílio ou no degredo. A pena do “hábito” refere-se ao uso do “sambenito”, hábito penitencial na forma de um saco vermelho com grandes cruzes, em amarelo, às costas e à frente.

[4] Cf. Novinsky, A. Op.cit;  pp 3.

[5] Cf. Dines, A. Op. cit.

[6] Consta que já em 1699 a Coroa de Portugal teria recebido 725 kg do precioso metal originário do Brasil.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Brites de Paredes Gramacha, uma mestiça em Meriti (I)

Brites de Paredes Gramacha não chegou a ser uma personagem da história do Brasil. Mesmo assim, seu nome ficou registrado em quase todos os estudos que se referem aos processos da nefanda “inquisição do santo ofício” que perseguiu durante a primeira metade do século XVIII os adeptos do judaísmo no Rio de Janeiro e cujo episódio mais conhecido foi a condenação à fogueira, em 1739, de Antonio José da Silva, o primeiro dramaturgo nascido no Brasil.

As perseguições e processos contra o judaísmo já vinham de longe, desde o século XV, na Espanha, e XVI em Portugal. Emigrar para as colônias distantes era uma saída quase sempre segura, mas vez por outra os tentáculos dos perseguidores eram lançados sobre os seus esconderijos tropicais nas Américas. No inicio do século XVIII um desses tentáculos abalou uma tranqüila e próspera comunidade que habitava os arredores do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense. Quase todos eles eram familiares de Antonio José da Silva. Toda essa história foi magnificamente narrada por Alberto Dines em "Vínculos de Fogo"[1].

Brites, que era um nome muito comum nos primeiros séculos da língua portuguesa e que depois foi modernizado para Beatriz, nasceu por volta de 1696 em alguma das muitas fazendas de cana-de-açúcar que se tinham instalado na Baixada, na margem ocidental da baía de Guanabara[2]. Nessa região estão hoje os bairros de Irajá e Pavuna, na capital carioca, e os municípios de São João de Meriti e Duque de Caxias, no estado do Rio. Gramacha era seu sobrenome, porque era filha de João Maio Gramacho, e porque naquele tempo era comum aplicar a desinência de gênero nos apelidos de família[3]. Seu pai era nascido no Rio de Janeiro e trabalhava como caixeiro e tinha trapiche de açúcar. Seu avô paterno tinha o mesmo nome, havia sido capitão de navio e constava ter nascido em Portugal. A avó também seria portuguesa.

A mãe de Brites era a mulata Lourença Mendes (de Paredes), nascida no Rio de Janeiro por volta de 1668, era filha do senhor de engenho Rodrigo Mendes de Paredes (falecido em 1698) com a preta forra Úrsula, de origem da Guiné. Lourença e João Maia Gramacho haviam se casado a 22 de outubro de 1688[4].

Lourença tinha outros seis irmãos, filhos de Rodrigo e Úrsula, três meio-irmãos, filhos de Rodrigo com Francisca, uma preta forra nascida em Angola, além de outros quatro meio-irmãos, filhos do mesmo Rodrigo com Maria de Gallegos, a esposa legítima[5]. Era preciso povoar o Brasil!

Lourença era prima, por parte de pai, de Brites de Paredes, casada com um dos senhores de engenho mais ricos daquela região, o também tabelião João Correa Ximenes. Homem importante nos negócios e que estava também preocupado em estimular a fé dos que viviam à sua volta, foi esse Ximenes quem mandou construir em suas terras (num local onde se encontra a atual Pavuna) uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Mas o Santo Ofício diria que se tratava apenas de fachada para encobrir os ritos da fé condenada.

Fachada ou não, foi nessa capela, no dia 6 de março de 1707, que Brites Gramacha casou-se com o alfaiate Agostinho Monteiro Mexia, mestiço, natural de Inhaúma, alfaiate de profissão, e que havia sido capitão de um batalhão de homens pardos[6]. Foi celebrante, o reverendo Padre Bernardo de Almeida. Brites tinha, então, apenas 12 anos.

O casamento de Brites e Agostinho era algo natural e sempre bem vindo. Havia muita terra para povoar. Mais do que isso, era um exemplo daquilo que viria a se tornar a principal característica da formação cultural da colônia: mestiçagem racial, pluralismo religioso. Avô paterno português, avós maternos de ascendência espanhola e africana; uns cristãos-velhos, outros cristãos-novos ou judeus, outros, ainda, seguidores de ritos africanos; brancos, pretos, pardos. O que leva a crer que a aventura nos trópicos para a busca da riqueza não dava espaço para velhos preconceitos.



Notas:

[1] Dines, Alberto “Vínculos do Fogo: Antonio José da Silva, o Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil”, Companhia das Letras, 1992, S.Paulo, 1054 pp;


[2] Cf. Rheingantz, Carlos. “Primeiras Famílias do Rio de Janeiro (Séculos XVI e XVII), vol. II, p. 513. Brasiliana, 1965, Rio de Janeiro.

[3] Idem, p. 513. As grafias “Gramacho” e “Gramaxo” são variações do mesmo patronímico.

[4] Idem.

[5] Cf. Dines, Alberto, op. cit., apéndice 1. Esta Úrsula não é a mesma escrava pela qual disputaram em 1712 José de Barros e José Correia Ximenes. Esta teria nascido por volta de 1690, aquela em torno de 1650. Ver Silva, Lina Gorenstein F. da, “Heréticos e Impuros: A Inquisição e os Cristãos-Novos no Rio de Janeiro – Século XVIII”, R.Janeiro, 1955.

[6] Algumas fontes mencionam que a capela teria sido construída em 1708. O registro do casamento de Brites e Agostinho, existente nos Arquivos da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, livro 348, fls. 32v, da Freguesia de N. Sra. Da Apresentação de Irajá, diz que o casamento foi realizado no dia 6 de março de 1707, no oratório de N. Sra. Da Conceição, pelo Padre Bernardo de Almeida.