domingo, 4 de abril de 2010

Brites de Paredes Gramacha, uma mestiça em Meriti (II)

(continuação)

Um auto-de-fé

Os velhos preconceitos continuavam presentes e fortes na vida da distante metrópole lusitana. São esses preconceitos que irão lançar uma nova onda inquisitória em Portugal e cujos tentáculos se estenderão além Atlântico. Já no ano de 1700 os inquisidores conseguiram por as mãos em alguns brasileiros desavisados que tinham ido para Lisboa[1] . E, usando de intimidação ou tortura, iam fazendo com que, pouco a pouco, os nomes dos parentes na colônia começassem a ser citados para os autos. Da citação viriam as ordens de prisão.

Alguns anos depois as famílias Paredes, Ximenes, Mendes, e quase todas as que lhes estavam associadas por laços de parentesco começaram a sofrer as perseguições. Todos estabelecidos na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Os navios traziam os mandatos de prisão. Começava o calvário dos condenados: primeiro, o cárcere no Brasil, depois a viagem de navio, novo cárcere na capital do reino, até o dia de realização do auto-da-fé, a espetaculosa procissão em praça pública onde assumiriam seus pecados, suas penitências, ou a morte no garrote ou fogueira.

Brites Gramacha e sua mãe Lourença foram sentenciados em 1716. Muitos dos que viviam à sua volta a antecederam na prisão e na viagem para o reino. Inclusive o rico João Correa Ximenes e sua mulher, por exemplo, que foram presos em 1709, no Rio de Janeiro, e julgados no auto-da-fé de 1713, em Lisboa, e ambos condenados. No mesmo auto outros 77 parentes foram julgados.

Brites e sua mãe, junto com outros 35 parentes, foram acusadas de professar a fé judaica. Foram presas em 28 de abril de 1715, envolvidas numa rede de acusações sob tortura que os inquisidores acumulavam desde 1713. Brites, foi denunciada por 24 testemunhas, a mãe por outras 33[2]. No auto-de-fé de 16/02/1716 realizado no Convento de São Domingos, em Lisboa, a jovem foi punida com cárcere e hábito por tempo a arbítrado pelos inquisidores, enquanto a mãe sofreu pena de cárcere e hábito perpétuo[3].

Agostinho Monteiro, marido de Brites, também havia sido acusado em 1713 de ser cristão-novo, mas seu processo não foi levado avante, reconhecendo-se sua origem como cristão-velho[4].

No total, de acordo com os registros disponíveis, entre os anos de 1700 e 1723 foram levados aos tribunais do santo ofício 305 pessoas oriundas do Brasil. Desses, nada menos do que 143 eram parentes de Antonio José da Silva, que ficou posteriormente conhecido pela alcunha de “o Judeu”.[5]

Mas há outros registros importantes daquela época para além dos autos do santo ofício. Fatos que estavam acontecendo naquele pedaço da colônia, que fizeram parte da vida daquela gente e que haviam de ficar gravados na história.

Brites Gramacha teria apenas um ano de vida em 1697, ano que é considerado como o da descoberta do ouro das "minas gerais". Ouro que dali por diante viria a passar a poucas léguas ao norte de Meriti, para alcançar os portos dos rios Iguaçu e Estrela e depois seguir, por mar, para o Rio de Janeiro. E o ouro era tanto e tantos os perigos que passava que o vice-rei mandou abrir um caminho mais curto e seguro para os tropeiros que vinham das minas[6]. Incumbiu para a missão ninguém menos que Garcia Rodrigues Pais, filho do famoso Fernão Dias Paes Leme, o “descobridor das esmeraldas”. Em 1699, Garcia concluiu o seu trabalho ao estabelecer o que ficou chamado como o “Caminho Novo do Pilar” que reduzia a viagem das Minas ao Rio, de três meses para apenas 15 dias.

Brites já estava casada e andaria preocupada com as notícias das prisões pelo santo ofício de gente que lhe era próxima, quando ouviu os relatos das duas invasões de piratas franceses à capital do reino, atraídos pelo ouro. O primeiro foi Jean François Duclerc, em 1710, cuja tropa foi derrotada e Duclerc aprisionado e, depois, assassinado. O segundo foi René Duguay-Trouin, que chegou no ano seguinte e fez com que o governador assustado com a rapidez do ataque e o tamanho da frota francesa fugisse com suas tropas para os campos de Meriti e Iguaçu. Foi acusado de covardia mas alegou em sua defesa que era ali que melhor poderia defender os caminhos que levavam ao ouro. A “estratégia” deixou a cidade completamente à mercê do francês. Trouin aproveitou para libertar os presos que encontrou num convento dos jesuítas, entre os quais estava o já mencionado João Correa Ximenes, tio-avô de Brites Gramacha, que aguardava o navio que o levaria para o julgamento em Portugal. Enquanto outros presos aproveitaram para fugir quando os navios de Trouin fizeram-se ao mar carregando o valioso resgate que arrancaram do governador fugido, Ximenes e a mulher deixaram-se ficar. Mas nem por isso ganharam o beneplácito do santo ofício. Suas propriedades como as de muitos outros, foram confiscadas pelo novo governador e depois utilizadas para ressarcir os gastos que a fazenda pública teve com o pagamento exigido pelo corsário francês. Muitas dessas fazendas e engenhos acabaram sendo arrendadas aos proprietários vizinhos e é muito provável que tenham sido, mais tarde, incorporadas aos seus patrimônios. O que não se sabe é se todos aqueles condenados, ao fim do cumprimento das penas que lhes foram impostas, voltaram ao Brasil para retomar suas atividades ou se ficaram em Portugal. Ou mesmo se buscaram outros destinos, à distância mais segura dos tentáculos dos inquisidores de Portugal e Espanha.

Levaria ainda cerca de meio século para que o Marques de Pombal acabasse com a ação inquisitória em Portugal e nas suas colônias.

Notas:

[1] Catarina Soares Brandoa é citada como a principal delatora do grupo, tendo como base os presentes a uma festa de casamento ocorrida anos antes, em 1694, “as bodas de Irajá”, onde eram nubentes Manuel Paredes da Silva e Catarin Marques Henriques. Cf. Dines, Alberto, op. cit. p 428.

[2] Cf. Novinsky, Anita. “Inquisição – Rol dos Culpados – Fontes para a História do Brasil (Séculos XVIII), Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1992, pp 126 e 167.

[3] Cárcere a arbítrio: prisão breve (podia ser domiciliar) a critério dos inquisidores, para que o réu fosse instruído nos mistérios da fé. Cárcere perpétuo: prisão de três a cinco anos, a domicílio ou no degredo. A pena do “hábito” refere-se ao uso do “sambenito”, hábito penitencial na forma de um saco vermelho com grandes cruzes, em amarelo, às costas e à frente.

[4] Cf. Novinsky, A. Op.cit;  pp 3.

[5] Cf. Dines, A. Op. cit.

[6] Consta que já em 1699 a Coroa de Portugal teria recebido 725 kg do precioso metal originário do Brasil.

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